Mamãe Terra tem me acolhido muito bem! A Amazônia é um berço esplêndido para renascer a cada dia! A experiência desses meses de janeiro e fevereiro começa com o abraço da floresta, só essa experiência de acordar a cada dia com essa gratidão explodindo no peito é um capítulo à parte… Tanta água, água, água, as veias pulsantes do planeta. Tanta vida, vida, vida, mineral, vegetal, animal, em forma de jibóias e jacarés a mosquitos e bactérias … tudo respira e prolifera VIDA! Tanta abundância, fertilidade e exuberância que nos encanta, coloca no colo e ao mesmo tempo assusta de tão majestosa e selvagem.

Sair do Céu do Mapiá para a tribo indígena foi como adentrar um portal mais além no túnel do tempo, vivenciar comunidades que parecem pairar no tempo e no espaço, mas na verdade só estão mais puramente próximas e integradas com aquilo que todos nós Somos e só precisamos nos lembrar. O primeiro impacto foi comovente. Nem pena, nem compaixão, só comoção de ver que existem pessoas vivendo daquela forma tão ancestral e originária. Emoção e gratidão de poder, ainda hoje, testemunhar essa pureza. Ao mesmo tempo, tirando todo romantismo, a pureza e a tradição vêm acompanhadas de curiosidade e atração pelo moderno. É mais que uma dualidade, é um paradoxo, como vou comentar mais adiante.

Assim cheguei na Aldeia Altamira, do Rio Tauaracá, perto da cidade do Jordão, no Acre. O Povo Huni Kuin (gente verdadeira) – conhecida por nós brancos como Kaxinawá – representa a maioria da população indígena no Acre, mas tem ocorrência não só aqui como no Peru, de onde provavelmente migraram. A etnia é reconhecida pelos seus kanês – padrões de desenho e pinturas – representando principalmente a jibóia encantada, que é tema de praticamente todos os artefatos culturais da etnia. Segundo a cosmologia Huni Kuin, a jibóia teria vindo de um reino encantado e foi responsável por mostrar ao homem – Dua Buse – o conhecimento da medicina e do preparo do Nixi Pae (chá da ayahuaska, usado em cerimônias).

 

Aldeia Huni Kuin – Educação integrada à Vida…

Onde mais eu poderia testemunhar uma comunidade que se “educa” na vida, no plantar, colher, preparar, agradecer e perpetuar sua tradição? Se a escola já é um fenômeno recente na humanidade, nas terras indígenas ela é ainda mais tímida e limitada, se comparada à grande escola da floresta e da tradição. Desde muito pequeno se assimila “como viver” na floresta, na comunidade, na maloca (construção típica das casas). Basta observar e imitar o que mãe e pai fazem e, quando vai crescendo, além de cuidar dos irmãos mais novos, vai-se percebendo no que quer se desenvolver mais… se é no canto, na caça, ou se têm uma missão de pajelança, e então basta se dedicar a estudar e estudar e estudar ao melhor estilo autodidata, aproveitando conselhos dos mais velhos e usando as sagradas medicinas para guiar essa iniciação empírica. Fazem-se dietas específicas para desenvolver determinados dons. 

Por exemplo, existe uma sananga (colírio) que ajuda os homens a caçarem melhor, e outra sananga feminina que ajuda as mulheres a desenvolverem melhor seus artesanatos e desenhos do padrão kanê (tradicional Huni Kuin). Para os cantadores a dieta do pássaro – shane – é o que ajuda a decorar as letras e melodias, e por aí vai… um estudo da vida inteira em que o estudante se dedica na medida em que deseja se tornar melhor – servir melhor – através daquela arte ou medicina.

Tudo isso, claro, é como eu percebi e interpretei. Ao ver uma garotinha de seis anos segurando no colo outro de dois. Ao ver Isakar de uns onze anos se apresentando como grande cantador. Lembro quando Dilma (três anos) fez uma pulseira pra mim, ou quando a Valéria (seis anos) me deu uma grande aula de como lavar roupa no rio. Após ver como eu estava fazendo, balançou a cabeça em desaprovação, tirou a roupa da minha mão e começou a lavar mil vezes melhor e mais cheirosa! Ela estava feliz e prestativa pois eu tinha compartilhado meu shampoo com ela. É, eles são tão abertos e interessados em tudo que acabam aprendendo também a usar sabão em pó, refrigerante, biscoito e açúcar… fazer o que, né? Quem somos nós para julgar, depois de anos consumindo e criando essas porcarias que só recentemente fazem parte da realidade deles…

Acordar, espantar as galinhas da cozinha, limpar os dejetos que elas deixaram, acender o fogo, começar a preparar a caiçuma e a macaxeira da manhã. Ir para o rio, lavar e areia as panelas, dar banho nos curumim, tomar um banho, voltar, começar a preparar o almoço, repetir todo o processo. Cuidar dos curumins. Sentar e fazer artesanato. Cuidar dos curumim. Opa, chegou visita, preparar, servir, limpar. Sentar e terminar aquele artesanato. No outro dia a mesma coisa, mas agora chegaram os maridos com o milho. Ralar, moer, fazer farinha, cus cus, pamonha, caiçuma… Amanhã todos vão colher o último roçado de amendoim. Mulheres colhendo, homens cortando e carregando. No outro dia é pesca com tinguí (planta venenosa para os peixes). Mulheres colhendo a folha, homens pilando e preparando as bolas para atirar no rio e recolher os peixes. Tudo isso é tão óbvio que causa um certo espanto quando falamos que – nessa idade! – nunca tínhamos feito aquilo. Chega a ser inimaginável para eles não saber aquilo, que é matéria dos primeiros anos de vida na prática cotidiana Huni Kuin. Quase tão esquisito como ter 28 anos e não ser nem casada nem ter 5 filhos!

Saber tudo (ou quase tudo) que se precisa para viver bem na sua comunidade. Poucos são os “especialistas” em algo, homem bom é que trabalha bem e sabe construir casa, mulher boa cozinha e faz lindos artesanatos, cada um de uma família, com certos talentos, mas todos sabem exatamente o que fazer para a vida acontecer em harmonia. E de onde aprendeu? “Com meu pai”, “com meu avô”. “E de onde eles aprenderam, de onde surgiu fazer assim?”, Ahh, pra isso têm as histórias que narram como as doenças surgiram na terra, depois a descoberta das medicinas quando parte do povo se transformou em quatro famílias de plantas para curar a aldeia; há histórias de como descobriram os legumes e começaram a cultivá-los; histórias de um tempo em que o povo falava com os animais e as plantas e só os comiam quando permitido; histórias de como o povo atravessou o jacaré encantado e foi para o Hemisfério Norte, onde havia o homem branco (nawá) dono da miçanga.

Tudo narrado, e então passado oralmente de geração em geração. Depois, chegando as interferências externas, um pouco de confusão, muito da tradição se perdeu, muito está se recuperando, e logo se ajeita o sincretismo necessário, descobre-se como usar aquela tecnologia, como lidar com as coisas dos nawás, integrando e absorvendo sem preconceitos o que chega, de forma até perigosa as vezes, com esse hábito de não pensar em “guardar para amanhã”.

Eu soube que os Huni Kuin contam a “canoa do tempo” em cinco momentos… o tempo da maloca – quando tudo era paz e sossego, sem doença, sem conflitos, sem homem branco – depois o tempo das correrias – quando foram invadidos e a correria toda começou – tempo do cativeiro – em que foram dizimados e escravizados, aí boa parte do conhecimento se perdeu. Compreende também o tempo da seringa, índio trabalhador, sem tempo de cultivar sua tradição, só trabalhar no seringal. Depois veio o tempo dos direitos – esse que estamos agora, com muita luta  por direitos que delimitam e devolvem a posse às terras indígenas, reconhecem sua tradição, saberes e idiomas, buscam garantir direitos humanos de saúde, educação, saneamento, enfim, até hoje essa luta sangra… – e futuramente o tempo do Governo dos índios – o tempo em que o resgate dos saberes indígenas vai inspirar e servir para outros povos e outras culturas – eu acredito que aos poucos esse tempo já está nascendo, haja vista a quantidade de brancos, brasileiros e estrangeiros que têm procurado esses saberes, haja vista a presença de uma candidata Guajajara na corrida para as eleições presidenciais.apontar e nos tornamos mais próximos de abraçar os paradoxos, que nos permitem conviver com a complexidade e aproveitar a potência do & em vez do OU. Quem sabe nesse dia muitas coisas causadas pela mente dual – como a violência, a competição, a disputa – tornem-se também obsoletas.

Esse é apenas o primeiro ensaio sobre essa que foi uma experiência divisora na minha vida, atravessadora do meu mundo e cujos movimentos internos ainda estão sendo processados por aqui… Transbordando a Amanda que existia, ganhei um novo nome: Amãda. Não numa cerimônia, em nenhum batismo formal, mas escrito na areia pelo pequeno Jacó.

 

Em breve trago mais pra vocês!