PONTES EM VEZ DE MUROS

Logo na minha chegada em São Paulo fui encontrar a amiga Vanessa Pinheiro que me hospedou por uns dias e tem sido grande parceira de jornada. Conversando animadamente sobre tudo o que poderíamos visitar em São Paulo, foi que ela me lembrou do CEU Heliópolis, sobre o qual eu já conhecia como Escola Campos Sales pelo livro “Volta ao mundo em 13 Escolas” com participação do André Gravatá. Pouco depois estava eu, indo tomar um café com o André, não nos conhecíamos pessoalmente ainda mas seus textos sempre me inspiraram muito!

Conversa vai, conversa vem, recheada da poética do olhar que ele traz pra qualquer assunto, ele me presenteia com o livreto  “Resistir até que existam territórios férteis” Mais uma vez lá estava a história do CEU batendo à minha porta, especial e apaixonadamente. Nas semanas seguintes a Vanessa me levou pra visitar e conversar com a atual coordenadora, Marília de Santis. A seguir narro essa história da minha visita e conversa com ela, costurada com trechos do livro.

HISTÓRIA

“As ocupações que começaram a formar a comunidade de Heliópolis, em São Paulo, ocorreram por volta dos anos 1960, com a construção do Hospital Heliópolis. Um pouco depois, nos anos 1970, esse processo se intensificou através de uma ação promovida pelo próprio poder público que, naquele momento, desapropriou áreas do entorno. Daí, a ocupação que seria provisória foi se tornando cada vez mais permanente… Nesse processo, os moradores começaram a enfrentar diversas dificuldades: o mesmo poder público que tinha colocado as famílias aqui, agora ameaçava removê-las com ação policial. Também tinha os grileiros que vendiam e alugavam lotes de terra como se fossem os donos. Além disso, faltava infraestrutura urbana; as ruas eram de terra e não havia esgoto, água encanada, energia elétrica… O que fazer então?! Inquietos com todos esses problemas, os moradores, liderados pela Genésia Miranda e pelo João Miranda, dentre outras pessoas, começaram a se juntar para mudar aquela realidade. A necessidade de se organizar coletivamente veio à tona. Surgiram as primeiras associações de moradores, organizadas em núcleos (…) As mulheres se destacaram, mostrando sua capacidade de organização, diálogo e resistência. Já nos anos 1980, os núcleos resolveram unificar a luta e se juntaram em uma única associação para ganhar força no diálogo com o poder público. Surgiu a UNAS: União de Núcleos e Associações de Moradores de Heliópolis e região.”

Laila Sala – Coordenadora de Ação Educacional de CEU Heliópolis Prof. Arlete Persoli, teceu estas palavras a partir dos relatos da comunidade recolhidos no “Projeto Memórias de Heliópolis”, realizado em 2012 pela UNAS e coordenado por Arlete Persoli e Marília De Santis.Trecho extraído do livro “Resistir até que existam territórios férteis”.

 

Assim nasce uma história de décadas de mobilização comunitária, cheia de ação e resistência, dessa que já foi considerada a maior favela da América Latina e onde hoje vivem cerca de 200 mil habitantes.

 

 

CAMINHADAS PELA PAZ

Como a gente faz pra desnaturalizar a violência?

A Caminhada nasceu há 19 anos com a morte de uma estudante, a Leonarda, que representou para a comunidade a gota d’agua em relação a violência e teve um papel muito importante de mobilizar as pessoas em torno de um propósito de paz. Como conta Laila no livro:

“Nas décadas de 1980 e 1990, Heliópolis viveu um dos períodos mais tristes de sua história, pois a comunidade passou a ser considerada uma das mais violentas de São Paulo. O crescimento da violência deixou muitas vítimas. E junto com isso, havia a ideia de que todo morador da comunidade era bandido. A juventude era o alvo principal da violência, porque os meninos e meninas tinham pouco acesso à educação pública, ao emprego qualificado, ao lazer. Era um estigma ser morador de Heliópolis. Em 1999, uma estudante da Campos Salles, Leonarda, foi assassinada em frente à escola. O diretor e o professor Orlando Jeronymo, junto com as lideranças da UNAS, decidem dar uma resposta a essa tragédia. Foi a origem da 1a Caminhada Pela Paz, reunindo aproximadamente mil pessoas, entre estudantes, professores e comunidade.” Laila Sala, em “Resistir até…”

Segundo Marília, hoje quando acontece um caso de violência isso choca, antes era natural. Ela considera isso uma vitória para a comunidade, fruto das caminhadas. A Caminhada pela Paz acabou então se tornando um movimento, o Sol da Paz, onde na reunião aberta as pessoas trazem as demandas da comunidade. Uma vez por ano quando tem a caminhada, geralmente em junho, ela acaba funcionando como um balanço e uma visibilidade para as questões das instituições. Ela atualmente reúne de 10 a 12 mil pessoas todos os anos. Além disso já estão influenciando e multiplicando a ação em outros territórios, como no Parque Bristol.

 

 

“Comunidade educadora nos ensina a consciência

De gente muito unida,

cheia de experiência

Que transforma a realidade

com trabalho e com amor

E leva essa verdade

para qualquer lugar onde for”

 

Manifestos da caminhada pela Paz, extraído do livro Resistir até que existam Territórios Férteis

ESCOLA SEM MUROS 

Derrubando muros para tecer relações

Marília conta que quando a escola Campos Salles foi fundada, há mais de 60 anos, atendia população de classe média e com o processo de favelização ela acabou sendo referenciada como uma escola de periferia, violenta. Se hoje o CEU Arlete Persoli em Heliópolis é visto como centro referência de educação para a comunidade, muito se deve aos movimentos entre instituições e comunidade que aconteceram desde os anos 90, especialmente com a influência de Braz Nogueira e Arlete Persoli.

“Na década de 1990, um novo diretor, Braz Nogueira, chega à Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) Presidente Campos Salles. Ele busca ajuda das lideranças comunitárias para transformar a realidade da escola, que era marcada pela violência. As transformações da escola não pararam de acontecer. Um projeto pedagógico inovador foi o caminho que a equipe da escola decidiu trilhar, junto com as lideranças comunitárias e alguns professores. “ Laila Sala, em “Resistir até…”

Uma das grandes mudanças realizadas pela escola foi literalmente derrubar muros e paredes da instituição na necessidade de extinguir  as barreiras entre escola e comunidade. Nesta ação- reflexão a escola se deu conta que não bastava derrubar muros.

Até ali, eles já vinham engajando e promovendo participação comunitária dos muros pra fora, pensando na escola além-muros. “Isso mudou um paradigma, pela coragem e ousadia de vencer o tráfico, não ceder a toque de recolher. Resistência para que o poder paralelo não fosse maior que o poder comunitário” comenta Marília. Mas e os muros de dentro?

Quando eles identificaram que, embora já tivessem derrubado os muros – literal e figurativos – que os separavam da comunidade externa, ainda existiam barreiras na relação entre professor e aluno. “Como a gente pode ser integrado com a comunidade e chega na sala de aula o professor fecha a porta e tudo é igual?” relembra Marília.

Foi então que a grande mudança começou ali dentro. Em 2006 foi a vez de derrubar os muros internos, as paredes da escola. As salas de aula se tornaram grandes salões, cada um com cerca de 90 estudantes e no mínimo 3 professores de diferentes áreas. Acabaram com as aulas expositivas e começaram a elaborar roteiros temáticos para aprender por projetos interdisciplinares, onde os estudantes trabalham em grupo.

 

Para isso, questionaram-se com uma pergunta poderosa: “Como a metodologias como da Escola da Ponte em Portugal e Amorim Lima em São Paulo poderiam ser adaptadas ao nosso contexto de Heliópolis?”  Nesta transição a escola além de derrubar paredes e muros, tirou aulas expositivas, acabou com as disciplinas e desde então vem  trabalhando por projetos e roteiros temáticos.

Como se dão esses roteiros? Marília conta que foram muitas etapas aprimorando esse modelo e ele é muito vivo.  Basicamente hoje a escola está caminhando para acabar com a seriação. Boa parte dos temas é escolhido no coletivo, ouvindo as demandas e respondendo ao contexto levantado pela comunidade. Procuram-se ressignificar datas comemorativas para trabalhá-las com profundidade, como o caso do “dia do índio” ou da semana da consciência negra, por exemplo.

“Sempre nos questionamos: De que forma os movimentos sociais podem pautar os projetos?” conta. O Plano Político Pedagógico (PPP) da escola já foi construído pensando nessa aproximação da comunidade. A escola torna-se então uma liderança no bairro, articulada com outras lideranças. Além disso, Parcerias privadas são bem vindas, como com a Telefônica que mudou a conexão à internet na escola e doou tablets.

“A comunidade organiza calendário  temático integrado, cada mês um tema que seja consenso e integrado com as mobilizações sociais, junto ao movimento de mulheres muito forte e potente, negro, LGBT, sem teto. Eles têm sido convocados e tem nos convocado pra fazer ações integradas. Isso faz toda a diferença para se valer da vida, falar da vida e melhorar a vida! O que está acontecendo na comunidade é pauta” conta Marília.

Se antes o método de ensino era o tradicional – como é até hoje na maior parte da rede pública – conta Marília, quando o Braz chega ele traz princípios muito importantes: um era de que tudo passa pela educação. Toda a sociedade  é responsável pela educação, em diversos espaços. O outro é que a escola é um dos lugares da educação, não o único. A escola tem que ser um centro de liderança, trabalhando articulada com as lideranças que já estão estabelecidas no território, além de preparar novas lideranças. Isso tudo junto com os princípios de autonomia, responsabilidade e solidariedade.

CHEGANDO NO CEU

Os Centros Educacionais Unificados (CEU), segundo consta no site da prefeitura, são equipamentos públicos criados pela Secretaria Municipal de Educação nas áreas de periferia com a intenção de unificar a gestão entre os equipamentos públicos de educação infantil e fundamental bem como os dedicados à práticas esportivas, recreativas e culturais, concebidos como um centro local da vida urbana. 

Até aí tudo bem, o CEU Heliópolis seria apenas um dos CEUs em São Paulo, mas o que acho mais especial nessa história é que em Heliópolis esse não foi um processo de cima pra baixo, em que a prefeitura foi lá e implantou o Centro no bairro, e sim foi conquistado pela comunidade, fruto de sua articulação, que de tão ativa tornou necessária a implementação de uma gestão unificada dos diversos equipamentos e atividades mobilizados pela comunidade.

Marília conta que o CEU Heliópolis começou em 2007 como centro de convivência, envolvendo terrenos próximos à escola como a avenida, a praça, etc. “A área estava muito degradada, a UNAS se junta então com a Escola Campos Sales e chama o arquiteto Ruy Ohtake que faz o projeto de Centro Unificado escutando e dialogando com a comunidade”.

Ela ressalta ainda o importante papel da UNAS como a instituição que começou esse trabalho de luta pelo direito de ficar, lutou pelo direito de permanecer no território com o mínimo de serviços públicos pra se ter cidadania, lutou de mãos dadas pela paz em todos esses anos e que hoje é uma potência na comunidade. “Essa é uma semente até hoje que só fez crescer. A UNAS hoje é uma parceria muito importante pra escola. A escola foi contribuindo para o movimento social e vice versa, de um jeito muito orgânico e isso que foi se construindo fortaleceu esse processo para que se tornasse o CEU.”

 

Hoje em dia o centro recebe mais de 10 mil pessoas diariamente e conta com equipamentos como a UNAS, a escola, três creches, uma Escola Técnica (parceria entre estado e município), o Centro Cultural, além do cinema, praças, área externa e ruas fechadas para carros, para as crianças ficarem seguras. No governo Haddad foram acrescentados ainda o Centro Esportivo, a Torre da Cidadania e a Biblioteca. Além disso, ele trouxe alguns programas como a UniCEUs (Universidade dos CEUs), que trouxe cinco cursos superiores semi-presenciais, o FABLAB, entre outros.

O CEU é organizado por núcleos de  Esporte e Lazer, Cultura e Educação, embora eles compreendam tudo de forma integrada. Na equipe são sete analistas de esporte, três bibliotecários, a administração do FABLAB e a admnistração da UniCEUs. Para administrar tudo isso de forma democrática existe o Conselho Gestor, principal instância deliberativa eleito bianualmente, composto por mais de 50 pessoas entre trabalhadores do CEU e lideranças comunitárias. Esse Conselho Gestor bem diversificado trabalha pelo consenso em reuniões mensais em que todos da comunidade (coordenadores pedagógicos, professores, famílias, gestores de ONGs, etc) vêm trazer as pautas e demandas.

FABLAB

Os FABLABs são uma tendência mundial, espaços makers, que combinam processos artesanais e tecnologias para colocar a mão na massa. Realidade comum no MIT (Estados Unidos), levariam facilmente umas duas décadas para tornarem-se realidade em comunidades vulneráveis, certo? Visando acelerar esse processo, em 2015 no governo Haddad ele trouxe para São Paulo 12 FABLABS públicos, dando origem à maior rede de FABLABs públicos da América Latina. Um deles fica no CEU Heliópolis e, além de oferecer vários cursos para projetos em impressão 3D, modelagem, marcenaria, por exemplo, está sempre aberto à comunidade para experimentarem e rodarem seus projetos.

 

 

Links: https://www.facebook.com/ceuheliopolis/

http://fablablivresp.art.br/unidades/ceu-heliopolis

[CONSCIÊNCIA COMUNITÁRIA + POLÍTICAS PÚBLICAS = SOCIEDADE EDUCADORA]

Como a gente pode assegurar que os direitos sejam preservados?

A partir dessa “fórmula” trazida pela Marília é que se busca cada vez maior articulação. Cada organização traz suas pautas e essas têm um contínuo trabalho de alinhamento. Para ela, a sociedade educadora se constrói a medida em que a população vai ganhando mais consciência, mais autonomia e clareza dos processos de mobilização e controle social e vai advogando por uma política de estado, e não de governo, que permita a continuidade dos projetos conquistados. Como é o caso do próprio projeto do FABLAB, que já sobreviveu a uma mudança de governo e a comunidade continua atenta e zelando por esse ativo.

“Nós somos uma excessão, em outros CEUs não existe gestor que sobreviveu de um governo a outro, e nós temos resistido. Por isso sonhamos com uma política de estado e não de governo. Que não dependa de quem vai entrar no governo. A comunidade não pode perder essas conquistas por interesses políticos. só esse ano nós tivemos 3 cortes, em uma equipe que já era pequena… Sem programas das secretarias obviamente isso impacta nossa prestação de serviços.” argumenta Marília

Arlete Persoli, que foi esposa do Bráz e diretora da UNAS, tornou-se a primeira diretora desde que este espaço se tornou um CEU. Com uma biografia de bastante militância, sempre buscando influenciar políticas públicas e fugir do sistema de favoritismo e jogos políticos que muitas vezes prejudicam os projetos. Por exemplo, em 2015 quando eles receberam o novo prédio, ele ficou um ano parado até que eles recebessem liberação para usá-lo, mas ainda não havia incentivo para equipe de gestão. Arlete ficou então por um ano trabalhando sozinha na gestão.

Com certeza, ela foi a grande liderança que levantou e sustentou essa instituição e fez com que esse colégio tivesse essa característica transformadora e é gratificando ver que hoje, é outra mulher, inspirada pela Arlete, que está levando adiante esse “ativismo delicado”, a Marília, com quem conversamos.

 

CONFIANÇA, AFETO E EMPATIA

 

Além da militância que já foi bastante exemplificada, esses também são ingredientes que não podem faltar no papel da gestão, segundo Marília: “O que a gente faz aqui basicamente todos os dias é primeiro, fomentar o uso desse espaço público e depois, uma vez que as pessoas cheguem é mediar conflito. Isso é o natural e estamos aqui pra isso!” diz.

Entre os sonhos citados por ela, além da própria conquista de autonomia legal, estão um Museu Comunitário para preservar sua memória de resistência e conquistas, um Centro de Imprensa Local que possa representar de fato as boas notícias e a realidade da comunidade.

 

 

O CEU Heliópolis é, pra começar, uma grande referência, que funciona na Rede Pública de Ensino, prova de que com pessoas engajadas e atentas às possibilidade de mobilização social e cheias de vontade é possível SIM fazer muito mais do que o sistema comumente oferta.  Além disso é mais um exemplo em que o termo “comunidade” tão apropriado pelo politicamente correto para designar favelas, assentamentos humanos em estado de vulnerabilidade social, exerce de fato a proposta de comum-unidade e alimenta esse senso de pertencimento e cultura fortalecida.

Enfim, é mais um exemplo de que é preciso construir pontes entre os seres humanos, entre professores e alunos formando lideranças na escola pautando ações à comunidade, vivendo em uma sociedade-escola sem muros!

 

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