Uma escola? Uma cidade? De crianças? Pais? Professores? Permacultores?

“A Ayni é isso aqui”, dizíamos entre nós, sentados em roda no chão da casa do bosque na nossa última noite como voluntários, como que finalmente concluindo após duas semanas de vivência. Bem como o Thiago Berto, fundador da escola, nos falou no primeiro dia em que nos recebeu: “A Ayni acontece aí dentro, na convivência que vocês terão, dentro de cada um”.

  

Nesse dia lembro de ter olhado ao redor, todos envolvidos em alguma tarefa na horta e no jardim, e de ter falado com um dos Rodrigos, conhecido como Capim, voluntário que nunca mais foi embora: “Olhe ao redor, parece que estamos todos nos curando, enquanto brincamos de escola”. Poucas horas depois foi exatamente isso que ouvi do Thiago.

  

Para nós, voluntários, essa era a Ayni que existia e nos convidava a brincar no bosque com a nossa criança interior, enquanto levantávamos paredes de barro, cuidávamos da horta. Tudo isso apenas como “desculpa” para aprender o que viemos aprender em nossas jornadas. Quem está la logo aprende a primeira lição, a máxima da Ayni: “quem precisa de escola são os seres humanos grandes, que chamamos de adultos, e as crianças não, elas só precisam ser deixadas em paz”.

Thiago arrisca definições, dizendo que a Ayni é uma expressão de arte para aquilo que há de mais bonito no ser humano, incluindo suas sombras. É algo a se confiar, embora difícil de explicar. Ele usa a analogia de que a Ayni é um acorde de quatro notas, ou um quadro pintado a quatro cores, para explicar seus princípios:

  1. Educação Consciente – Deixar as crianças em paz, honrá-las e deixá-las Ser;
  2. Economia Consciente – dinheiro/ lucro privado investido em favor do bem público;
  3. Alimentação Consciente – tudo que envolve não envenenar nosso templo/ corpo;
  4. Concepção Consciente – em um propósito de reconectar com o sagrado – feminino e masculino em cada um – para que venham mais crianças frutos de berços conscientes.

Para a equipe de 11 pessoas, além dos cursos, vivências de permacultura e formação para  educadores, a Ayni é a transformação que acontece nos encontros, reuniões e relações criadas entre eles, em processo, conectados pela vulnerabilidade. Fala-se de cura e espiritualidade, sem demagogias, como fala-se de orçamento, obras e cronograma, enquanto prepara-se o espaço para os “pequenos mestres” que irão chegar.

“A Ayni é um convite para que todos, a começar por mim, caminharmos mais adiante e avançarmos em maturidade emocional e espiritual” – diz Thiago.

Para a cidade de Guaporé e para as escolas da região a Ayni ainda é curiosidade, às vezes estranhamento. Espera-se que ela seja inspiração na cidade, no país e por que não no mundo, sem ser concorrência ou substituição da escola convencional. Para para quem ainda não vivenciou a Ayni pode ser uma ideia inspiradora e bastante abstrata.

Foi isso que eu senti ao entrar na Ayni – uma nobre e integra verdade difícil de explicar, mas imediatamente reconhecida no coração, que ia além de qualquer coisa que eu tivesse lido ou ouvido. “Tenho saudades de casa” disse o Thiago quando perguntei sobre o seu sonho. “Esse é o meu sonho, voltar pra casa” (olhando para o céu) a Ayni seria então apenas um projeto a cumprir muito bem para poder voltar em paz. “Mas sem nenhum apego”. E sem apego mesmo, pois ao final de 20 anos o terreno cedido será devolvido para a prefeitura.

Novamente, concluo, é tudo sobre os vínculos e as relações que nos permitimos criar, “desculpas” mais nobres que arranjamos para nos conectar, nos nutrir e curtir o barato que é estar andando nesta jornada da Terra. Quando muito, alcançamos uma leve consciência e acreditamos que essa andança toda deve levar a algum lugar, a um propósito superior. Intuímos nosso papel neste grande filme e projeto de evolução do planeta. Alguns têm a “bênção” da ignorância e se contentam com alguma resposta válida para “como funciona” a vida, atuando nos papéis que lhes cabem. Outros, como eu, têm o “benefício da dúvida” e se permitem experimentar, testar e buscar possíveis respostas para explicar, com nossas plausíveis e vãs filosofias, o que há entre o céu e a terra e então qual seria uma forma autêntica e genuína de contribuir. Muitas vezes inspirados pelos que “não têm o benefício da dúvida”, como parece ser o caso desses visionários que tenho encontrado pelo caminho (como a pessoa que me ensinou essa expressão). Esses seguem apaixonadamente obstinados por uma visão forte, muitas vezes vistos como loucos aos olhos do mundo, necessários instrumentos para o “impossível” se manifestar.

De forma prática, a Ayni é uma “cidade-escola” que está em fase de construção e preparação para receber sua primeira turma no início de 2018, com 10 famílias de crianças de 4 a 6 anos, que irão crescer junto com o restante da estrutura. Terá ateliers para as crianças, refeitório comunitário, biblioteca, horta, viveiro, parquinhos, lago e bosques.

  

É uma “escola” porque é o termo mais fácil de explicar sua vocação, é uma “cidade” porque tem potencial para envolver todo o território e servir para o desenvolvimento de todos os seres humanos, que por acaso podem ser adultos, pais, educadores, etc.

Além disso, ela é uma escola privada de ensino gratuito, pois a relação que quer estabelecer não é com clientes, mas com famílias conscientes, parceiras em uma comunidade de aprendizagem. Atualmente eles estão em processo de triagem dos primeiros pais e o primeiro requisito para famílias que quiserem se matricular é que os pais queiram fazer parte e dediquem pelo menos uma hora na semana à essa comunidade escolar, seja trabalhando na horta, seja oferecendo outros conhecimentos.  O segundo compromisso é que as crianças não deixem a escola formal, o terceiro é que levem as práticas aprendidas para casa. Se a criança lava a sua própria louça na escola, lavará em casa. Se é praticada a escuta empática na escola, ela irá fazer em casa. Além disso serão ofertadas vivências e (des)formação para esses pais.

“Porque não adianta a gente criar um campo seguro aqui para a criança ser quem ela é e em casa ela não ter isso“, comenta Ana Paula Zatta, guardiã da pedagogia que está atualmente à frente da revisão da proposta pedagógica para aprovação na Secretaria de Educação.

Pedagogia Viva, Livre e Consciente

Depois de viajar alguns lugares do mundo e tomar contato com diversas pedagogias como a Montessori, Escolas Democráticas, etc; hoje o proposta pedagógica trazida pelo grupo inicial está sendo adaptada e se encaminha para uma Pedagogia Viva, Livre e Consciente. Ana Paula comenta as três premissas: adulto consciente, ambiente preparado e a criança.

Ela exemplifica a pedagogia viva se lembrando de um episódio que viveu enquanto fazia formação na Escuela del Bosque no Uruguai: “Tinham cinco crianças pulando na cama elástica e a maestra falou ‘a cama elástica só aguenta 100 quilos’, essa foi sua única intervenção nos 20 minutos que se seguiram, até o momento em que as crianças decidiram descer e se pesar para ver quem devia sair, e aí começaram a fazer contas e, surgindo uma dúvida, perguntaram para a maestra que mediou esse conhecimento. A cama elástica já não era mais a questão, mas a matemática aplicada na vida.”

Na escola nem mesmo o parquinho tem uma forma sugerida, os brinquedos são desconstruídos para que a criança crie a própria brincadeira. No passado, sofremos intervenção até sobre como brincar, como brincar “certo”. “A gente tá acostumado a fazer essa intervenção constante porque fomos invadidos quando éramos crianças.”, ela segue contando que isso na pedagogia viva é diferente. É uma volta ao simples, olhar para a criança e deixar ser. Isso não quer dizer falta de limites, pelo contrário, como se dá autonomia a criança precisa saber as regras e ser lembrada sobre elas. Trazem-se os acordos, existe um ponteiro maior – um adulto consciente – de apoio para lembrar os limites e as consequências de seus atos.

O que se reflete também na visão dos conflitos, sobre a qual conversamos bastante. Ana acredita que quando o conflito é abafado, mediado ou resolvido pelo adulto, e ninguém ouviu a criança, nem o adulto nem a outra criança, isso representa a perda da oportunidade de ensinar a criança a desenvolver habilidades emocionais.Fala-se muito em gerenciamento de conflito nas escolas, com dinâmicas e técnicas pra isso, quando o maior desafio está ali, nas relações diárias, no ouvir, ser reconhecido, não tem forma melhor de aprender…  Isso serve para todos, especialmente o adulto. Sem dúvidas é uma desconstrução constante do educador, “não tem como fazer pedagogia viva sem mudar dentro primeiro” .

Ela conta que em geral essas crianças, quando mudam para a educação convencional, vão muito bem em nível de conhecimento pois aprenderam a pensar por elas mesmas. Já o modelo de avaliação na Ayni será construído inspirado no índice de Felicidade Interna Bruta criado no Butão. Olhar como cada aluno chegou e como ele está depois, olhar para a criança em sua integralidade, expressa na sua felicidade. Isso envolve criar vínculos e conhecer de fato cada um!

Por fim, a palavra “Ayni” é de origem quechua e quer dizer reciprocidade, um modo de vida, uma organização social equilibrada no dar e receber. Foi recebida no Peru, nos Andes, onde dizem pulsar o sagrado feminino. Já a imagem da logo, os quatro amigos harmoniosos, ilustra a interdependência na natureza,  e por sua vez foi inspirada em uma gravura que Thiago recebeu no Butão, representando uma antiga história da região do do Himalaia, conhecida como representação do masculino.

[+] Veja a entrevista que gravei com o Thiago aqui: https://www.youtube.com/watch?v=ONzVbnYGVkA&feature=youtu.be

[+] Sobre a Pedagogia da Ayni, tem um vídeo da Ana explicando bem: https://www.youtube.com/watch?v=tX7c1njuzkA&t=601s

[+] Veja mais no site da  Cidade Escola Ayni.